Marituba - Contos e causos.
por André Costa Nunes
– André, tu não achas que é uma tremenda sacanagem essa invenção de carteira de idoso? Perguntou de chofre o Marapanim.
Pronto, pensei, acabou a minha esperança de sossego no fim de um dia estressante. Tudo o que eu queria era tirar a roupa e mergulhar no igarapé que nasce em frente à minha casa aqui no Uriboca, em Marituba. Quem resolve morar em sítio tem a doce ilusão de que vai viver contemplativo. Criando, plantando, ouvindo, lendo, escrevendo. Hedonista. Ledo engano. As pessoas pensam que somos meros zeladores de clube campestre, ou, como diz o Getulinho Bohadana, puta de salão. Tem que estar sempre arrumada, sorridente e solícita quando o freguês chega. De preferência logo perguntando se aceita uma bebida.
– Porra, Marapanim, retruquei, de mau humor, não enche o saco, o que é que tu tens contra a bendita carteira de idoso? Isso é democrático, cidadania, acho até que vou tirar a minha. Deixar de pagar passagem de ônibus, entrada em cinema, teatro e uma porrada de vantagens.
– Não é favor nenhum, está tudo previsto em lei, retrucou.
O Marapanim, para quem não sabe, junto com o professor Jônathas e o Maracajá, moram aqui por perto e, depois da morte do Adamastor são os mais assíduos frequentadores do papo regado à cachaça da beira do igarapé. Os dois primeiros são radicais militantes da esquerda etílica. O Maracajá é apenas curupira, aliás, o único curupira caçador que conheço.
– Ih meu cacete, não estou entendendo onde queres chegar, tu mesmo dizes que a carteira do idoso está prevista em lei…
– Égua, cara, embotaste a cuca, ou melhor, embostaste. O que está previsto em lei é o direito do idoso. Carteira, não. A carteira do idoso, constitucional, universal é a carteira de identidade, que tem idade, filiação, fotografia, impressão digital e o escambau. Qualquer outra é abusiva, humilhante, e com certeza alguém está ganhando dinheiro com isso.
– Lá vem tu com essa mania de ver conspiração e corrupção em tudo. Esse teu esquerdismo exacerbado está ficando chato. E além do mais ouvi dizer que a tal carteira é de graça. Argumentei por argumentar, mas senti o golpe. Começava a fazer sentido a tese do porra-louca-da-esquerda-etílica, mas deixei rolar. Ele que argumentasse.
Ainda não estava de todo relaxado. Tomei um trago da cachaça do Maracajá e, ali mesmo comecei a tirar sapato, meia e suspensório, para o tão ansiado mergulho.
– Para começar, a quem interessa maldita carteira? Ao idoso? Ele já não tem a de identidade? Imagina a vergonha, a humilhação que é mandar saltar um velho no pleno uso de seu direito porque não tem a carteira que homens inventaram só de prepotência e ganância. Continuou.
– Não deve ser só por isso. E como vai passar na catraca eletrônica? Interrompi. – É a modernidade, cara, alguma hora teria que chegar por aqui.
– Já se vê que faz tempo que não andas de ônibus. Idoso não passa em catraca. Entra pela frente e salta pela frente. Se a entrada é por trás, a mesma coisa, entra e sai por trás. Isso quando o motorista para. E que passasse, o problema não era dele, a empresa que desse seu jeito. Tu disseste que andas de metrô em São Paulo, como é lá?
– Quem é velho, tira um passe, válido por seis meses na estação Deodoro. Quem não quer tirar, basta apresentar a carteira de identidade para o funcionário que toma conta da catraca e passa sem pagar.
– Viu? Eu não disse? Sem constrangimento. A tua modernidade bem que podia começar por ônibus novos, modernos e em quantidade suficiente e não essas latas de sardinhas atopetadas, já que ninguém observa o limite da lotação.
– E os empresários, como ficam? Eles têm que faturar, ter lucro, até para poder renovar a frota. É isso, ou aumentar o preço da passagem.
– Agora, sim, caiu a máscara. Tua preocupação é com meia dúzia de empresários, coitados, cartelizados a dividir o butim da desgraça da massa ignara. Transporte coletivo é concessão de serviço público.
Desta vez pegou pesado. Ainda não havia falado na massa ignara, seu bordão predileto. Acho bom arrefecer, se não ele vai achar que estou ganhando algum dos donos de ônibus, mas mesmo assim continuei.
– Marapanim, essas coisas não são tão simples assim. A prefeitura não pode fazer o que bem entende, tem a Câmara dos Vereadores…
– Para com isso, interrompeu-me. Quando foi que tu viste prefeito, vereador ou deputado andando de ônibus? Ou mesmo votar a favor do povo? Com essa vou-me embora. Carteira de idoso para velho provar que é velho. Só na tua cabeça e no bolso dos empresários. Ainda mais em ano de eleição.
Já estava escurecendo, enquanto o Marapanim decepcionado sumia na curva do caminho, tomei mais um gole de cachaça juntei meus sapatos com os dedos em gancho e ainda tive que ouvir o velho Maracajá, amuado, murmurar atrás de mim:
– Quem te viu e quem te vê.
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